segunda-feira, 18 de maio de 2009

O Senhor Bispo



OLIVEIROS GUANAIS

Todos os anos, na festa de São Francisco (segundo domingo de outubro), a Mombaça recebia a visita do bispo de uma cidade vizinha, de cuja diocese faz parte.
A festa de São Francisco era impregnada de misticismo, havia orações, foguetes, vivas a São Francisco e procissões o tempo inteiro, com os devotos cantando:
Viva São Francisco,
Com sua nobreza,
Retrato de Cristo,
É o pai da pobreza.

Naquele tumulto de fé ou de faz-de-conta, a presença do bispo quase passava despercebida. Ele hospedava-se na casa grande da família, a Vivenda Sinísia, lá fazia refeições e só saía para os ofícios na igrejinha e outras cerimônias religiosas.
Num certo ano, lá esteve D. Fulgêncio, uma figura elegante, alto, espigado,sisudo, poseur.
Mal trocava cumprimentos corriqueiros com as pessoas. Mas só o vi nessa ocasião, e, aliás, nem sei se ele era ainda bispo de Amargosa ou se fora convidado especial com licença eclesiástica, já que ele dera assistência religiosa no passado a muitas daquelas festas, no tempo do coronel João Coni, pai de minha sogra.
No ano seguinte à presença de D. Fulgêncio, estava eu posto em sossego, tomando já as minhas doses matinais de uísque, quando chegaram minha sogra e minha mulher ciceroneando um bispo, que me foi apresentado como sendo o bispo da cidade vizinha. E deixaram comigo o pepino.
“Prazer, excelência. Vamos sentar, excelência. Vossa excelência toma alguma bebidinha: uísque, cerveja? “ -”Cerveja”. -“Vou buscar”. E trouxe uma garrafa de cerveja bem gelada com um só copo para sua excelência reverendíssima.
E fomos em frente, dando início a um tour de force em que eu tomava uísque e o bispo tomava cerveja. E era eu o encarregado de encher os copos de sua excelência e de ir buscar mais cervejas, que se renovavam rapidamente ( havia outros molhadores de garganta, como Mário Bulcão, e bebedores competentes – desses que não ficam bêbados - como Ivo Nascimento.)
As horas passavam, a conversa era animada e instrutiva, fiquei sabendo que João XXIII deixara o Vaticano arrasado, sendo preciso a energia e o senso de organização de Paulo VI para colocar a casa em ordem; fiquei sabendo que o meu interlocutor era alinhado com D. Casaldaglia; “mais uma cervejinha excelência?” “Pode ser”. (“Valei-me ‘seu’ Senhor Deus meu, a coisa aqui hoje promete” ).
Estávamos no melhor do papo quando percebi que as mulheres aprontavam das suas: estavam botando a comida na mesa. E não demorou para que minha mulher aparecesse com
a falinha mansa e dissesse: “Oliveiros, a comida está na mesa. Chame o senhor bispo para o almoço.” E eu, fulminante, atalhei: “senhor bispo, o senhor não prefere almoçar aqui mesmo, aqui a gente fica mais à vontade.” E o senhor bispo concordou comigo, obrigando minha mulher a fazer dois pratos que comemos onde bebíamos e bebíamos enquanto comíamos. E após o almoço, continuamos a beber, até que alguém veio chamar o bispo para realizar a crisma, sendo que eu era padrinho de Sérgio, sobrinho de minha mulher e livre escolha dele para mostrar-lhe o caminho do céu. O senhor bispo estava a fim de continuar conversando, quando veio o segundo recado para que ele fosse, pois estava na hora do ofício. Eu, apesar de estar mais calibrado que o bispo, tive o bom senso de alertá-lo para a necessidade de que ele fosse, e assim ele rumou-se para a igreja, talvez tendo o cuidado de passar ao longe das velas.
Eu estava a rigor, usando meu traje favorito da Mombaça: bermudas, pés descalços, camisa para fora, cabelo desalinhado. Passei pela porta da igreja e vi sua excelência no confessionário, cochilando e absolvendo, em nome de Deus Nosso Senhor. Mas as confissões não duraram muito, talvez porque uma imensa fila de candidatos ao crisma alongava-se pela alameda de palmeiras da porta da igreja. Lá estava Sergio, tão pronto para ser crismado como eu estava pronto para ser o padrinho e o senhor bispo para ser o celebrante, mas com a ajuda de Deus tudo deu certo. E hoje Sérgio é um bom cristão de missas que não foram celebradas ainda, e o senhor bispo deve ter sido removido para alguma cidade distante e eu estou aqui, cronista dos episódios épicos da Mombaça.

Salvador, setembro de 2006

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