sábado, 23 de maio de 2009

Elogie a Casa

Todos sabem a força de um elogio: à beleza, ao desempenho de qualquer atividade, à apreciação de um bem, à inteligência. Se você quiser agradar a alguém que acabou de fazer um discurso ou dar uma aula, seja o primeiro a chegar a ele e dizer que ele foi magnífico, brilhante. Só quem passou por situações de receber o elogio pode dizer da importância que uma apreciação desse tipo consegue. Nada mais triste, para quem fala, do que descer de uma tribuna sem receber palmas ou elogios. O mesmo se dá com os professores que dão aulas ou fazem conferência e depois não ouvem nada sobre elas. Há situações em que elogios específicos são importantes. As mulheres se encantam quando se diz que elas são bonitas. Outras esperam e contentam-se com elogios ao cabelo: como está bonito, que brilho, que corte, quem cuida de seu cabelo?
O elogio ao vestido serve também, principalmente quando caro. E assim por diante.
O criador de cavalos de raça espera o reconhecimento de seu belo animal. O de gado em exposição, então, nem se fala: os criadores que expõem nessas ocasiões são de uma vaidade doentia, porque lá se reúnem iguais, possuidores também dos melhores exemplares das melhores raças, e são todos vaidosos, extremamente vaidosos. Mas chega. Qualquer um pode fazer uma relação infinita de situações que servem para exemplificação da matéria.
Vamos falar, então, de um tipo de vaidade especial, começando por referências a pessoas importantes. O relato está num dos contos de Guy de Maupassant. Narra ele que um amigo seu foi, em companhia de um amigo, à casa de Émile Zola, quando este estava no auge da glória e da fama. O motivo da visita era um proposta levada pelo amigo do amigo sobre uma transação editorial envolvendo uma das obras do grande escritor. Este, vestido em seu roupão elegante, sentado à sua mesa, ouviu em silêncio a proposta do visitante e, depois de concluída a mensagem, respondeu categórico mas delicadamente: -“não, a proposta não me interessa.” Foi uma decepção para os visitantes, principalmente para o interessado no assunto. Mas traçando a estratégia da retirada, o que não era interessado no caso comentou: -“ mestre, que linda casa o senhor tem...” E, fora a proposta que não foi aceita, tudo o mais mudou. Derreteu-se o gelo, porque o semblante do escritor iluminou-se, e ele se pôs a falar da casa ( uma bela mansão no meio de árvores e flores, um verdadeiro castelo, com todos os requintes de bom gosto, capaz de causar orgulho ou inveja a qualquer barão ou senhor feudal da idade média. E forneceu detalhes da compra do sítio, da planta da casa, da construção, do significado de cada coisa. E isto aconteceu com um homem cercado de reconhecimento intelectual pelo mundo inteiro, romancista de valor e combativo defensor dos direitos do homem. Mas que era humano, e, portanto, alvo também da vaidade.
Eu tive uma casa à beira-mar, num condomínio fechado, perto de Salvador. A casa foi construída por mim, só não fiz carregar tijolos com minhas mãos. Mas surgiu de acordo com os meus desejos. Era uma bela casa, rústica mas atraente, típica casa de veraneio, destaque para os padrões da época em que foi construída (1972-1973). E, claro, era muito visitada. E todas as pessoas que chegavam lá iam logo observando a casa, o coqueiral, o mar, e diziam-se encantados com o lugar, aliás, com o paraíso: “isto aqui é um paraíso” . (Paraíso era a palavra que todos usavam para qualificar aquilo que deveria ser um refúgio mas terminou sendo um clubinho de gente até que eu nunca vira.)
Eu e minha mulher ficávamos lisonjeados, é claro, pois gostávamos daqueles elogios tão constantes e iguais.
Por que será que tantos ( os que podem ) fazem casarões que parecem castelos, mansões suntuosas, cheias de quartos e banheiros, de salões e de varandas, com piscina e quadras de tênis? Vaidade.
Por que outros são donos de carros caríssimos, raros, restritos a poucos privilegiados? Vaidade. Por que os preços altíssimos com que se arrematam cavalos de raça em leilões? Vaidade. Por que as mulheres usam jóias caríssimas, que não servem sequer para destacar-lhes a beleza? Vaidade. Assim, “A vaidade é de todo o mundo, de todo o tempo, de todas as profissões, e de todos os estados”, como disse o nosso grande e pouco conhecido filósofo Mathias Aires.
E continua valendo o ensino do Eclesiastes: “vanitas vanitatum, et omnia vanitas”.


Salvador, 25 de novembro de 2008
Oliveiros Guanais

terça-feira, 19 de maio de 2009

Protesto em Brasília

Oliveiros Guanais
A entidades médicas nacionais conseguiram uma audiência com o todo-poderoso presidente do senado, Antonio Carlos Magalhães, a ocorrer no dia da cassação do senador Luiz Estêvão. Todo poderoso até aquele dia, porque, exatamente naquela votação, ele cometeu o crime de grampear o sistema de votação secreta para conhecer a manifestação de cada votante. E isto lhe custou o mandato, por renúncia tática, para não ficar inelegível por dez anos. Reserva moral da nação! Antônio Carlos tinha na Bahia uma grande amizade com um médico, colega que participa do movimento associativo, pelas bandas da ABM. O senador fazia questão de dizer que esse era seu médico particular, para afastar outros tantos que desejavam serem médicos dele. E, por isso, recorria a ele por qualquer problema de saúde e, em contrapartida, fazia por ele coisas impossíveis, como aquela audiência naquele dia. Mas acertou e cumpriu. Nós saímos do Conselho Federal de Medicina em três ônibus ( era muita gente ) e rumamos para o Congresso Nacional. De longe, avistamos intenso movimento no gramado que fica em frente aos prédios onde trabalham ( ? ) senadores e deputados. Era manifestação de um movimento popular, com pessoas de todas as idades, mas com predominância de jovens, e muitas bandeiras vermelhas ondulavam sobre a grama verde. Havia seguranças por todos os lados: homens fortes, nervosos, armados, dando ordens e orientações. Nossos ônibus pararam a certa distância, antes da rampa, e fomos orientados a entrar por uma lateral, acesso mais apropriado ( levando-se em conta os que “trabalham’ naqueles prédios), mais apropriado para sair às escondidas que para entrar com segurança. Mas foi para lá que nos dirigimos. O grupo, visto pelos que estavam na retaguarda, constituía um espetáculo fúnebre ou sinistro. Havia muitas mulheres, essa todas com suas vestes femininas coloridas, mas os homens, quase todos de ternos escuros, faziam um cortejo de aves negras e sombrias, marchando a passos lentos no caminho secreto da entrada. Soldados nos acompanhavam sempre. Em dado momento, tivemos de ficar de novo expostos à vista da multidão de manifestantes, que, à distância, gritavam slogans. Os soldados, cada vez mais nervosos, orientavam-nos como fazem as cuidadoras de crianças em passeios de escola. E nós, obedientemente, indo para onde eles nos mandavam. Estávamos junto da piscina que fica em frente de uma daquelas cumbucas arquitetônicas, quando os manifestantes começaram a descer com suas bandeiras e suas ordens. Vinham, vinham descendo em direção ao lugar em que estávamos. Os soldados mandaram-nos ficar concentrados em um só lado, mas eles vinham decididos. A certa distância, pararam, mas a algazarra continuou. E depois de certo tempo, começou a haver conversas entre participantes dos dois lados. O entendimento fazia-se à margem dos soldados. Eu me aproximei de um grupo e passei a ouvir a conversa que se travava entre os seus participantes. A porta-voz mais ativa do grupo de manifestantes que ouvi era uma jovem tipo classe média, que deu logo a endenter que eles estavam acreditando sermos nós aliados de Luiz Estêvão, estando lá para levar apoio ao senador que seria cassado logo mais. Várias vozes do nosso lado desfizeram o engano: - nada disso; nós somos médicos e estamos aqui para lutar por nossos direitos; há gente de todos os partidos nesta caravana; há gente do PT, do PC do B e também de partidos de direita; mas o nosso objetivo é reivindicatório; somos também explorados. A moça ficou surpresa: - ah, nós pensamos que vocês fossem gente dele; eu sou dentista e sei como o pessoal de saúde é explorado. E, virando-se par os manifestantes que estavam mais à frente, disse em voz alta: -pessoal, não é nada do que estávamos pensando, eles são médicos e vieram também reivindicar interesses deles; vamos voltar. E, num lance pitoresco, eles deram-nos as costas e tomaram o caminho de volta, numa cena que me lembrou a pequena história chamada “O Túnel”, de Akira Kurosawa, no filme de fragmentos “Os Sonhos” ( Um tenente , recolhido por doença, não participa de uma batalha em que morrem todos os membros do seu batalhão. Recebe depois a visita dos seus mortos, que vêm em forma, marchando, e não obedecem aos seus argumentos de voltar para o descanso eterno. Até que ocorre ao tenente a idéia de agir como chefe militar, e, nessa condição, grita a voz de comando: - batalhão, sentido! - meia-volta, volver! - Marchem” E tudo acontece conforme suas ordens. ).
Para mim, aquele dia foi inesquecível; não só por esse episódio pitoresco, mas também porque um senador corrupto foi sacrificado, como boi de piranha, deixando a manada de iguais às margens em segurança, mas também porque o todo-poderoso dominador da Bahia foi vergonhosamente desmascarado numa delinqüência indecente, tendo que renunciar ao seu mandato. Como disse o senador poderoso num discurso feito para o último general do círculo da farda, citando um provérbio chinês: “toda caminhada começa pelo primeiro passo”. E aquele, que atingiu os dois, pode ter sido o primeiro passo para a limpeza da sujeira crônica da política brasileira.

Salvador, 12 de maio de 2009

segunda-feira, 18 de maio de 2009

O Senhor Bispo



OLIVEIROS GUANAIS

Todos os anos, na festa de São Francisco (segundo domingo de outubro), a Mombaça recebia a visita do bispo de uma cidade vizinha, de cuja diocese faz parte.
A festa de São Francisco era impregnada de misticismo, havia orações, foguetes, vivas a São Francisco e procissões o tempo inteiro, com os devotos cantando:
Viva São Francisco,
Com sua nobreza,
Retrato de Cristo,
É o pai da pobreza.

Naquele tumulto de fé ou de faz-de-conta, a presença do bispo quase passava despercebida. Ele hospedava-se na casa grande da família, a Vivenda Sinísia, lá fazia refeições e só saía para os ofícios na igrejinha e outras cerimônias religiosas.
Num certo ano, lá esteve D. Fulgêncio, uma figura elegante, alto, espigado,sisudo, poseur.
Mal trocava cumprimentos corriqueiros com as pessoas. Mas só o vi nessa ocasião, e, aliás, nem sei se ele era ainda bispo de Amargosa ou se fora convidado especial com licença eclesiástica, já que ele dera assistência religiosa no passado a muitas daquelas festas, no tempo do coronel João Coni, pai de minha sogra.
No ano seguinte à presença de D. Fulgêncio, estava eu posto em sossego, tomando já as minhas doses matinais de uísque, quando chegaram minha sogra e minha mulher ciceroneando um bispo, que me foi apresentado como sendo o bispo da cidade vizinha. E deixaram comigo o pepino.
“Prazer, excelência. Vamos sentar, excelência. Vossa excelência toma alguma bebidinha: uísque, cerveja? “ -”Cerveja”. -“Vou buscar”. E trouxe uma garrafa de cerveja bem gelada com um só copo para sua excelência reverendíssima.
E fomos em frente, dando início a um tour de force em que eu tomava uísque e o bispo tomava cerveja. E era eu o encarregado de encher os copos de sua excelência e de ir buscar mais cervejas, que se renovavam rapidamente ( havia outros molhadores de garganta, como Mário Bulcão, e bebedores competentes – desses que não ficam bêbados - como Ivo Nascimento.)
As horas passavam, a conversa era animada e instrutiva, fiquei sabendo que João XXIII deixara o Vaticano arrasado, sendo preciso a energia e o senso de organização de Paulo VI para colocar a casa em ordem; fiquei sabendo que o meu interlocutor era alinhado com D. Casaldaglia; “mais uma cervejinha excelência?” “Pode ser”. (“Valei-me ‘seu’ Senhor Deus meu, a coisa aqui hoje promete” ).
Estávamos no melhor do papo quando percebi que as mulheres aprontavam das suas: estavam botando a comida na mesa. E não demorou para que minha mulher aparecesse com
a falinha mansa e dissesse: “Oliveiros, a comida está na mesa. Chame o senhor bispo para o almoço.” E eu, fulminante, atalhei: “senhor bispo, o senhor não prefere almoçar aqui mesmo, aqui a gente fica mais à vontade.” E o senhor bispo concordou comigo, obrigando minha mulher a fazer dois pratos que comemos onde bebíamos e bebíamos enquanto comíamos. E após o almoço, continuamos a beber, até que alguém veio chamar o bispo para realizar a crisma, sendo que eu era padrinho de Sérgio, sobrinho de minha mulher e livre escolha dele para mostrar-lhe o caminho do céu. O senhor bispo estava a fim de continuar conversando, quando veio o segundo recado para que ele fosse, pois estava na hora do ofício. Eu, apesar de estar mais calibrado que o bispo, tive o bom senso de alertá-lo para a necessidade de que ele fosse, e assim ele rumou-se para a igreja, talvez tendo o cuidado de passar ao longe das velas.
Eu estava a rigor, usando meu traje favorito da Mombaça: bermudas, pés descalços, camisa para fora, cabelo desalinhado. Passei pela porta da igreja e vi sua excelência no confessionário, cochilando e absolvendo, em nome de Deus Nosso Senhor. Mas as confissões não duraram muito, talvez porque uma imensa fila de candidatos ao crisma alongava-se pela alameda de palmeiras da porta da igreja. Lá estava Sergio, tão pronto para ser crismado como eu estava pronto para ser o padrinho e o senhor bispo para ser o celebrante, mas com a ajuda de Deus tudo deu certo. E hoje Sérgio é um bom cristão de missas que não foram celebradas ainda, e o senhor bispo deve ter sido removido para alguma cidade distante e eu estou aqui, cronista dos episódios épicos da Mombaça.

Salvador, setembro de 2006

A Praça da Revolução


Oliveiros Guanais
Fui a Cuba em 1961 como invitado especial para as comemorações do 2º. aniversário da revolução. E o ato mais empolgante de todas as comemorações deu-se numa grande praça que já tinha ou veio a ter o nome de Praça da Revolução. Dominava essa praça um grande monumento em forma de obelisco, dedicado, salvo engano, a José Marti. A multidão era em torno de um milhão de pessoas, levadas de todos os recantos do país. Houve um desfile militar e logo depois o discurso de Fidel. Aqueles discursos de 6, 8 horas, acompanhados pela multidão excitada. Na condição de invitado especial, eu estava na arquibancada, perto do orador e das autoridades presentes. O tempo foi longo, deu para circular e conversar com as pessoas, dava pra ver o jogo de mímica de Fidel e o que aconteceu quando começou a chuviscar. Alguém veio de lá com um capote e jogou nos ombros de Fidel, mas o bravo revolucionário recusou com um gesto intempestivo. O cuidador do comandante insistiu e a recusa foi mais brusca ainda. Mas aí entrou a participação do povo, daquela imensa multidão que se acumulava na praça e começou a gritar: “que se cubra; que se cubra; que se cubra”...Fidel vacilou, a multidão gritava “que se cubra, que se cubra, que se cubra” e por fim ele aceitou a proteção da capa. Mas não perdeu o mote e disparou: - “en este momento en que nuestra pátria se encontra amenazada por el imperialismo yankee, que importan unas pocas gotas de lluvia”.. E foi aí que eu ouvi um grito agudo e alto de voz de mulher: “mas importante es usted, Fidel”, havendo aplausos dos que estavam perto e uma onda de gritos que foram se transformando em ovação. Eu trouxe relato desse episódio para a Bahia e por muito tempo um colega brincava comigo : “ Que se cubra, que se cubra”...

1990.Voltei a Cuba mas Cuba não era a mesma. Era uma cidade envelhecida, pobre, desprovida de recursos essenciais para a população, com suas mercearias desabastecidas. Fazia pena. E o pior era a notória descriminação da população local, que não podia circular por todos os lugares, não podia ter acesso às tiendas que vendiam produtos do mundo capitalista, a dollar, e não podia sequer ter acesso à praia de Varadero! (Quem diria, o tema das praias privativas para estrangeiros era um dos argumentos fortes do ideário da revolução e o mesmo estava acontecendo no regime com que tantos sonharam e pelo qual tantos morreram !).
Fizemos um city tour, o ônibus parou na Praça da Revolução. Eu olhei para tudo, já estivera ali em circunstâncias tão diversas e fiquei emocionado. Identifiquei o monumento a Marti, as arquibancadas das autoridades nas ocasiões festivas, só não vi o povo, só não vi Fidel, só não vi a mim próprio. Tive pena do meu passado e dos meus ideais. Mas me pus a falar: - eu já estive aqui, já estive nesta praça, eu presenciei lá de cima, perto de Fidel, as comemorações do 2º. aniversário da revolução, em 1º. de janeiro de 1961. Eu queria ser ouvido, queria que soubessem que eu já participara de um momento daquele lugar e consegui. Ao falar a data em que lá estive , o motorista do ônibus disse: -foi o desfile do “que se cubra”.
Naquele instante pareceu-me ouvir a voz de um fantasma:- como você sabe disso, perguntei. E ele respondeu: - eu era soldado e participava da marcha. Que coincidência, meu Deus, estou vivendo sonhos...

Em março de 2004 retornei a Cuba e encontrei outras diferenças. O aspecto físico de Havana continuava o mesmo ou talvez pior. A moeda do país, para estrangeiros, agora era o dollar. As coisas continuavam escassas e tudo era muito caro, mesmo livros sem valor, vendidos nas praças como se fossem preciosidades. E a dollar!
Pobre Cuba, de tudo aquilo que eu vi no passado só restava o orgulho do povo, voluntário,
obrigatório ou de conveniência.( Os cubanos continuam arrogantes, mas agora estão na contingência de gostar de dollars, o que faz sentido e se compreende).
Fomos à Praça da Revolução. O ônibus parou e o guia deu-nos 15 minutos. Eu tinha por companheiro um colega do Tocantins, de direita e com muito má vontade para com o país. Tiramos fotos da fachada de um edifício que tem a efígie de Che Guevara e eu convidei o colega para irmos à arquibancada das solenidades. Lá divisei o local onde vi Fidel falando ( uma muralha curta, de altura suficiente para servir de tribuna ) e parei, pedindo ao colega que tirasse fotos minhas gesticulando, mas uma senhora zeladora do lugar foi logo me avisando : “señor, no puede, no puede, señor”, Solimar, tira logo essa foto, Solimar “no puede señor”, si, si, vamos logo com essa porra, Solimar,” já me voy, señora”, rápido , Solimar, e a essa altura já estava no fim da bancada, sem saber se a foto fora tirada e se ficara boa. Mas, de qualquer forma, eu estive no Olimpo em que ainda fala o Deus das Américas, mesmo que para dizer a seu povo que eles continuam vivos.

Salvador, 05.02.06

A "Lição" do Mestre

Oliveiros Guanais

Em 1960 havia uma greve na Bahia: estudantes x Reitor Edgard Santos. Este era um reitor realmente magnífico, mas nós precisávamos de um adversário para os ideais da nossa juventude. E como todo ser humano tem seus pontos vulneráveis, era nesses que atacávamos o reitor. Mas este não será o alvo deste relato, e sim o vice-reitor, que tinha grande influência nos meios universitário e intelectual da Bahia, pois tratava-se de Orlando Gomes, jurista de relevo reconhecido como tal nos meios acadêmicos do país.
Tínhamos que atingir também Orlando Gomes, pois ele era peça importante da instituição universitária.
Circulava no Rio de Janeiro, aos domingos, junto ao Correio da Manhã, um Tablóide estudantil com o nome de “O Metropolitano”. Era lido no Brasil inteiro por determinada categoria de interessados, e, ademais, era um jornal muito bem feito.
Ocorreu-nos, então, entrar em contacto com o colega Alfeu Meireles, que era presidente da União Metropolitana dos Estudantes, a que “O Metropolitano” era subordinado, e pedir uma força para o nosso movimento. Alfeu atendeu-nos prontamente e para cá deslocou-se um dos melhores jornalista da equipe, de prenome Romão. Romão foi recebido por nós com todas as mesuras, dei a ele minha cama na Residência do Universitário e lá também ele fazia refeições. Ficou uns quatro dias na Bahia, tempo suficiente para que ouvisse todas as fofocas que nos interessavam, relatos de situações que apenas nos eram reveladas sem provas, e lá ia Romão tomando notas.
Entre as informações de irregularidades graves perpetradas pelos dirigentes da Reitoria constava o fato de que o Vice-Reitor, Orlando Gomes, como diretor do Banco Mercantil Sergipense, depositava lá recursos da Universidade, contrariando dispositivo legal.
Romão retornou ao Rio, a cobertura da greve da Bahia foi excelente, ficamos muito satisfeitos. E o tempo passou.
Um belo dia, fui procurado por Alfeu que me deu a triste notícia de que Romão estava sendo processado por Orlando Gomes por crime de injúria , calúnia e difamação, e que o feito corria no foro do Rio de Janeiro. Ficamos perplexos. Pobre Romão. Que fazer? Procurar um advogado para defendê-lo. E a escolha recaiu sobre Romeiro Neto, famoso criminalista que ganhou imensa notoriedade no chamado crime do Sacopã, coisa ocorrida uns dez anos antes. Fomos então ao escritório do grande Romeiro Neto. A comitiva era Alfeu, Romão e eu.
O escritório do temível advogado ficava no segundo andar de um prédio velho na Cinelândia, e lá chegamos subindo escadas, pois não havia elevador.
Expusemos detalhadamente a situação, ele fez perguntas, em suma, houve as formalidades costumeiras. Ao final, nós já não tínhamos mais nada para dizer, e um longo e desconfortável silêncio tomou conta do ambiente. Alfeu era o mais pragmático de todos e foi ele quem deu prosseguimento à conversa. – “Mais alguma coisa doutor”? E a resposta foi incisiva e fulminante. – “Sim. Não tratamos ainda de um aspecto importante do acerto”. Pequena pausa e Alfeu continuou: - “É dinheiro, doutor”? O mestre respondeu com segurança: -“Não, não é dinheiro não. Mas não se acerta uma relação de trabalho sem deixar claro o valor a ser pago por ele. Vocês são jovens e precisam aprender que o trabalho deve ser remunerado e o acerto deve ser feito no momento em que se faz o trato”. Alfeu de novo: -“E quanto é, doutor”? –“A questão não é essa, vocês vêem o que podem pagar”. Cochichamos entre nós e Alfeu falou por todos: “cinco mil dinheiros, pode ser”? – “Eu não estou negociando valor, quero apenas que vocês aprendam uma lição”.
Finalizamos.
Descemos as escada danados da vida com aquele mercenário que só sabia trabalhar por dinheiro, como se ele tivesse obrigação de fazer generosidade com um grupo de estudantes que representavam grandes entidades.
Meses depois a causa foi julgada e Romeu condenado. Mas Orlando concedeu-lhe o perdão, alegando que também tinha filhos jovens e entendia as audácias da juventude.

Salvador, 07 de julho de 2006.

Caymmi e o Trabalho


Oliveiros Guanais
Trabalhar é criar, destruir ou transformar alguma coisa, pela inteligência, pela inspiração, pelo conhecimento ou pela força. Acho que esta definição é razoável. É indecência justificar a exagerada riqueza de uns dizendo que trabalham muito, como se o operário em construção não trabalhasse nada. A riqueza nada tem a ver com trabalho, mas com esperteza. Também é parvoíce ou má-fé considerar preguiçoso um homem de gênio e talento, como Dorival Caymmi, que produziu uma das mais belas obras musicais e poéticas do Brasil, tendo por alvo e beneficiária, quase sempre, a Bahia, a Bahia em que viveu a mocidade e guardou no coração. Caymmi, em sua fase ativa, cantou as baianas, Itapoã, a Lagoa do Abaeté, os coqueiros, o mar e os pescadores, colocando esta terra como fonte permanente de beleza e inspiração. Caymmi não foi vencedor quantitativo de criação, mas, de qualidade, sim. Foi o expoente da obra-síntese, pouca mas perfeita. Que Caymmi virou o símbolo nacional do charme e do dengo, vá lá, porque, afinal, ele era um artista. Mas que era o símbolo da preguiça é transferir para ele o que os paulistas dizem de todos os baianos, e isso parece coisa de meninos que procuram eximir-se de culpas transferindo para outros os defeitos ou erros que lhes são atribuídos.
(Argumento da delação). Caymmi compôs pouco porque não trabalhou por encomenda, nem para atender aos pedidos do momento, nem pensou em ganhar dinheiro fazendo música. Para ele, “a gente faz [apenas] o que o coração dita”. Caymmi há de ser lembrado sempre, enquanto houver memória e sensibilidade para apreciação da beleza.(E, de sobra, deixou também para os seus filhos o dom divino da música)

O último canto de Camafeu

Oliveiros Guanais
Camafeu do Oxossi era muito conhecido na Bahia. Seu nome era Apio Patrocínio da Conceição, mas era por Camafeu do Oxossi que todos sabiam dele. Vi-o apenas uma vez, antes da história que vou contar. Foi no restaurante que ele tinha no primeiro andar do Mercado Modelo. De uma lado ficava ele, do outro Maria de São Pedro. Camafeu era negro, sorria fácil, vestia uma camisa havaiana, usava um chapéu de palha de grandes abas.Camafeu e Maria de São Pedro eram duas celebridades da Bahia, dois nomes de força da cultura negra e do folclore baiano..De Camafeu eu conhecia um LP, editado nos anos sessenta, e que tinha músicas muito do meu agrado.Um dia, lá pela década de 90, o Dr. Roberto Santos, cirurgião competente de cabeça e pescoço- incluindo a parte oncológica - disse-me que no Hospital Aristides Maltez, dedicado ao tratamento de câncer, foi procurado por um senhor chamado Apio, ou seja, Camafeu do Oxossi, e que este era portador de câncer de laringe. Ao ser informado de seu estado, e sabendo que precisava tirar a laringe para ter chances de continuar vivendo, Camafeu ficou triste e resmungou: mas assim eu não posso cantar mais. Mal acabara de falar isso, sua mulher pulou em frente e afirmou com energia: tu toca pandeiro, bem.( Brava mulher! ). Passaram-se uns 15 dias e eu me vi escalado para fazer anestesia para uma laringectomia, aos cuidados do Dr. Roberto Santos, no Hospital Português. O nome do paciente era Apio. Fui à sala de espera, encontrando lá um senhor triste que respondeu aos meus comprimentos com voz baixa e rouca; olhei o prontuário, os exames e aguardei a chegada do cirurgião. Quando este apareceu, disse-me logo: você se lembra do que eu falei de Camafeu do Oxossi? Pois é ele que vamos operar hoje.Fomos para sala e o paciente foi colocado na mesa cirúrgica, lúcido, consciente. Eu fiz algum comentário , dei início às minhas arrumações e, de costas para ele, comecei a cantarolar:“Pernambuco deu um tiro,Maceió arrespondeu, Paraná”. Paraná (u)ê,Paraná ( u)ê, ParanánMal terminara o refrão, ouvi uma voz rouca prosseguir:“Bahia vitoriosaDo lugar nem se mexeu, Paraná”Aí eu me virei com rapidez e, olhando-o, perguntei: -Uai, o senhor conhece esta música?Ele deu uma risadinha e disse com voz abafada: “essa música é minha”-Sua, seu Apio, essa música é de Camafeu do Oxossi. -Eu sou Camafeu do Oxossi, respondeu ele. -Seu Apio, o senhor vem me gozar numa hora dessa. Dizer que é Camafeu do Oxossi! E ele sorria parecendo feliz, mas acabara de cantar, pela última vez , dois versos de sua canção mais famosa.
Oliveiros Guanais
Agosto de 2007

O Senador Eterno da Bahia

Oliveiros Guanais
Em 50 anos de militância política, iniciando por cargos eletivos aqui e logo depois no cenário nacional, foi lá, no senado federal, que o seu talento pôde afirmar-se e fazê-lo reconhecido como uma das maiores cerebrações nacionais. E olha que no seu tempo o senado reunia as maiores expressões da inteligência e da cultura do Brasil, não era esse galinheiro de hoje. Para ser o melhor naquela época, era preciso ser alguém de genialidade excepcional. Pois o nosso senador o era. Chamava-se Rui Barbosa. Não vou falar de todos os campos em que o seu gênio brilhou. Ficarão também de lado as controvérsias que aconteceram em torno de suas ações e de sua maneira de ser, com os que não gostavam dele, por inferioridade ou por inveja, apontando traços negativos em suas obras e em seu estilo: acusações que lhe foram feitas, em vida, deram-lhe oportunidade de contestá-las todas, com um ímpeto que causava medo e silêncio nos seus detratores. Verboso, de palavreado longo, alheio às realidades nacionais, voltado para a cultura de outros povos e de outros tempos, advogado de interesses estrangeiros, tudo isso e muito mais disseram dele... Há um pouco de razão em algumas dessas críticas, mas, afinal, ninguém é perfeito. E quem o atacava? Micos, gente pequena, porque todos ficavam pequenos comparados a ele. E, de qualquer forma, as suas maiores virtudes relacionam-se ao enfrentamento dos poderosos, ao combate ao militarismo, à contribuição jurídica doutrinária e ao ativismo de uma advocacia desassombrada, criando dificuldades imensas para Floriano Peixoto e envergonhando ( já naquele tempo) o Supremo Tribunal Federal no julgamento do primeiro “Habeas Corpus” que lá chegou, apresentado por Rui em defesa de oficiais revoltosos da marinha.Por seu enfrentamento ao “Marechal de Ferro”, foi obrigado a pedir asilo na embaixada chilena e a seguir depois em exílio para Argentina e de lá para a Inglaterra. E vale destacar ainda a “sua coragem pessoal, [que foi] até maior do que o seu talento -se isso for possível”- como afirmou o seu mais respeitável opositor no senado, o grande representante do Rio Grande do Sul, Pinheiro Machado. É da relação entre os dois que vamos falar um pouco. Foram amigos e correligionários políticos, depois ficaram em campos opostos, mas um admirava e respeitava o outro. Pinheiro, como líder do Partido Republicano Conservador, se batia muito com Ruy, líder liberal. E uma vez, no curso dos debates, disse assim – “ Deus sabe o sacrifício que me custa enfrentar V.Ex. nesta tribuna”. E, em outra ocasião, afirmou: “ –Quando Rui fala, eu fico mais inteligente. Ele diz o que eu quisera dizer”. Pinheiro, sexagenário, andava em conquistas femininas, o que levou Ruy a dizer num discurso, dirigindo-se ao seu opositor: “V. Ex., touro osco do Sul”... [ Osco, no Rio Grande, é o tom acinzentado do pelo do gado vacum]. Ao que Pinheiro redargüiu : -“ E V. Ex., brilhante sagüi dos canaviais do Nordeste”...Certa vez, o deputado Germano Hasslocher, freqüentador do mansão do Morro da Graça ( residência do senador gaúcho), furioso com um ataque que Rui desferiu contra Pinheiro Machado, esbravejou: -“ Amanhã vou reduzir Rui a farelo”. Pinheiro interveio: -“Não. Tu não vais fazer nada disso. Primeiro, porque reduzir Rui a farelo não é tarefa ao alcance do poder humano. Segundo , porque, dado que o conseguisses, que sobraria depois neste país?”Quando Pinheiro Machado foi apunhalado pelas costas no Hotel dos Estrangeiros, Rui recusou, irado, a proteção de uma patrulha mandada para protegê-lo na eventualidade de uma manifestação da ira popular.Dias depois, o nosso senador preparava-se para comparecer à missa de sétimo dia por alma de Pinheiro, quando lhe chega um amigo para uma consulta de ordem jurídica. Rui sobe numa escada em busca de um livro da última prateleira e cai. Ao tentar levantar-se, não consegue. Tinha quebrado a perna. O médico que o atendeu decretou: setenta dias de repouso. Ruy então comentou, com bonomia: “Foi a última rasteira que o Pinheiro me passou. Não quis que eu fosse à sua missa.”Rui não deve ser lembrado como a “Águia de Haia”, nem como o homem que “falava todas as línguas”, ou se propunha a “ensinar inglês aos ingleses”, tudo isso fruto da reverente imaginação popular. Rui deve ser lembrado como defensor das liberdades, da justiça, da igualdade entre as nações em face do Direito. Deve ser lembrado pela coragem que teve de enfrentar sábios e poderosos, armados ou não.